“E para que se aguce a possibilidade de ler poesia das coisas é preciso educação e cultura.”
Por Elenilson Nascimento
Como esta é a minha última coluna de 2014 no Cabine, o mínimo que se pode dizer desse aninho ordinário, pelo andar da carruagem, é que já vai tarde. E o que é pior: do ponto de vista coletivo, promete ir embora arrastando 2015 para uma ribanceira daquelas sobre as quais é melhor não pensar. Mas, vamô que vamô… E na manhã do último domingo, 21/12, às 11h da manhã, a Sala Principal do TCA, em Salvador (BA), recebeu o multi-instrumentista Carlinhos Brown num pocket show usando piano, berimbau, violão e até playback para homenagear os 30 anos do axémusic, marcando o encerramento da temporada 2014 do projeto “Domingo no TCA” que desde 2007, através da Secretaria de Cultura e Governo do Estado da Bahia, tem oferecido espetáculos de qualidade nas mais variadas linguagens, representando uma importante opção de lazer para o público soteropolitano carente de boas atrações.
Antônio Carlos Santos de Freitas, o Brown, é um compositor de mão cheia, cantor desafinado, poeta comprometido as suas raízes e percussionista de um talento imenso que adotou o nome artístico de Carlinhos Brown em homenagem a James Brown e H. Rap Brown, líderes da música negra da década de 1970. Para quem não sabe, Brown iniciou a sua carreira ainda muito jovem, através do Mestre Pintado do Bongô, e seus primeiros instrumentos sempre foram os de percussão, predominantes dos terreiros de candomblé. No ano de 1979, tocou até numa banda de rock chamada Mar Revolto, em sua primeira gravação profissional. Cinco anos mais tarde, tocou na banda Acordes Verdes, do Luiz Caldas, além de ter sido um dos criadores do samba-reggae e, em 1985, fazendo parte da banda de ninguém menos do que Caetano Veloso no antológico disco “Estrangeiro”.
Já nos anos 1990, liderou o grupo Timbalada, tornando-se conhecido internacionalmente. Grupo este que conseguiu reunir mais de cem percussionistas e cantores, chamados de “timbaleiros”, a maioria jovens pobres do bairro do Candeal, onde nasceu o compositor. Mas apesar de não tocar mais com esta banda, Brown continua sendo o mentor, incentivador, divulgador e produtor do grupo. Em 2001, foi alvo de grandes polêmicas ao participar do “Rock In Rio”, sendo recebido com garrafadas, pedradas e xingamentos – num episódio lamentável. O incidente ocorreu pelo fato de ele ter seu show programado justamente no “Dia do Rock”, que reuniu Guns N’ Roses, Ira! e Ultraje a Rigor, Oasis, entre outras bandas, ou seja, devem ter colocado ele propositadamente para servir como boi de piranha, mesmo levantando uma pequena bandeira com o dizer “Paz no Mundo”, que um espectador lhe deu, e gritar as frase “eu sou do amor”, “eu só jogo amor”, a chuva de garrafas e o apedrejamento não cessou até o artista e sua banda serem expulsos do palco.
Depois , após o sucesso da Timbalada, começou sua carreira solo em 1996, com o lançamento do disco interessantísismo “Alfagamabetizado”. Recentemente, o álbum entrou para a lista do livro “1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer”, que reúne opiniões de noventa críticos reconhecidos internacionalmente. Em 2002, lançou o bem sucedido projeto “Tribalistas”, ao lado de Marisa Monte e Arnaldo Antunes. Recentemente, lançou o single “Earth Mother Water”: um apelo pela preservação do planeta, que teve o vídeo da música dirigido por Gualter Pupo e Valter Kubrusly, que faz parte de manifestações contra o consumo irresponsável dos recursos naturais, e ainda se divide entre a carreira internacional, que tem uma base sólida principalmente na Europa, projetos sociais no bairro do Candeal Pequeno, em Salvador, além dos projetos culturais, shows, propagandas, produção de discos e trilhas para espetáculos de dança, filmes e o desnessessário e bizarro programa “The Voice Brasil” (Globo), comandado por Tiago Leifert, onde é jurado ao lado de Claudia Leitte , Daniel e Lulu Santos.
Fiz questão de listar as multifacetas desse artista, pois muitos têm me questionado sobre a importância do Brown na cena cultural da Bahia. E, como já foi dito, no último domingo, o autor de “Tantinho”, “A Namorada” e do recente disco “Ritual Beat System” preparou um pocket show onde tocou alguns instrumentos como piano e berimbau, além de ter cantado o mínimo de músicas possíveis. Mas a odisseia para consegui um ingresso por 1,00 começou bem cedo. Às 7 horas da manhã a fila já estava enorme, e quando o tempo ameaçou fechar e uma fina e breve chuva começou, muitos que estavam na fila correram para debaixo do teto de teatro, ao lado das bilheterias, provocando um início de tumulto. Às 9 horas em ponto, os portões foram abertos e em menos de meia hora o teatro já estava lotado.
O show começou antes das 11 horas, com toda a ansiedade que o movimento das poltronas estavam demostrando. Brown entrou no palco todo de branco, elegantérrimo e sacudindo uns chocalhos, sentando-se num piano e tentando tocar quando, de repente, da plateia, ouve-se gritos de pessoas discutindo por causa de luzes de celulares filmando a apresentação, mesmo com todos os avisos que seria proibido filmagens. A falta de educação do público soteropolitano – uma minoria, claro – fez a equipe do TCA ressuscitar o trabalho dos antigos “lanterninhas” dos cinemas. Alguns espectadores não respeitam a orientação repassada antes dos espetáculos – não fotografar ou filmar eventos, especialmente peças de teatro – e ficam de forma egoísta, grosseira e esbanjando total falta de educação tirando fotos, usando flash, em pé na frente dos outros e tirando a atenção. Coisas bem típicas de gente deslumbrada que precisa colocar tudo no Face para se exibir…
Passadas as primeiras manifestações de burrice, Brown continuou ao piano tentando homenagear os 30 anos do axémusic, depois levantou-se, agradeceu a presença do público, mas era nitído a seu incomodo com a situação e, no improviso, começou a explicar os ritmos criados para o Axé. Em seguida, chamou ao palco quatro percussionistas e continuou o show, num resumo do resumo do que ele oferece aos ricos turistas frequentadores das suas festas no Museu du Ritmo. E, totalmente improvisado, Brown perdeu muito tempo contando “causos” e deu pouca importância ao que deveria ter sido feito ali, mas tocou muita percussão e teve sérios problemas com o playback durante uma das performances. E precisava de playback, senhor Brown?
Num dos momentos meiguices, ele reconheceu uma antiga professora numa das primeiras fileiras, desceu do palco e abraçou a docente, e nisso, mais “causos”, e uma chuva de aplausos pela atitude do artista. Foi quando várias pessoas saíram dos seus lugares para fazerem selfies com o artista. Ao longo das manifestações de carinho fora de hora, o artista precisou pedir para as pessoas pararem de tirar fotos e filmar, que aquilo poderia ser feito em outro momento: “Preciso voltar a trabalhar!”, disse. E dá-lhe tirar a atenção dos músicos e do público. Minutos antes, nem tinha começado o show e já tinha gente com tripé armado e câmera aberta na minha frente. E durante os quase 50 minutos do show ficou filmando, tirando a atenção de todos ao seu redor. Uma coisa lamentável!
Há pouco tempo, eu disse numa outra matéria para um jornal local, e repito, que estamos vivendo a terceira guerra mundial, mas em cotas e selfies. Há sistemas econômicos que, para sobreviver, devem fazer guerras. Então, fabricam e vendem armas (*lembram do filme “O Senhor das Armas”?) e, com isso, os balanços das economias que sacrificaram o homem aos pés do ídolo do dinheiro, obviamente, ficam saneados. Mas estamos vivendo a era da ignorância, da falta de educação e do não tratar bem o outro… porque o outro é apenas mais um. E para que se aguce a possibilidade de ler poesia das coisas é preciso educação e cultura. Outra cultura. Cultura vinda de casa, pois a escola está falida! A cultura que não querem dar ao povo, mesmo, com shows, de vez em quando, por 1,00; seja porque acham lindo o povo ser do jeito que é, seja porque é mais difícil fazer uma revolução cultural sólida, ou seja, principalmente, porque um povo culto vai perceber melhor a merda em que está vivendo e os merdas que estão no comando.
O show do Carlinhos Brown no TCA serviu, mais uma vez, para mostrar que vivemos sim numa sociedade segregada. Dúvido muito que ele fizesse um show de qualquer jeito se esse fosse no seu Museu du Ritmo, dúvido que os seguranças cruzassem os braços quando alguém ameassasse invadir o palco e/ou ficar gritando na plateia para tirar a atenção. Somos todos iguais mesmo? Dúvido muito! Mais também temos o direito de sermos desiguais, até na falta de educação, em relação a nossa cor, raça, sexualidade ou crença, tanto que até a lei de Deus nós garante isso através do livre arbítrio, quanto a lei dos homens permite qualquer tipo de descriminação.
Acho muito engraçado quando esses artistas não têm um discurso coerente com as suas raízes, além de não se pensar nas crianças famintas ou nos jovens negros assassinados pelo tráfico ou pela polícia nas periferias (*cadê Davi?). Os artistas de hoje não pensam nos deslocamentos forçados, na segregação no mercado de trabalho, não pensa nas moradias destruídas por causa de uma chuva, não pensa em tantas vidas ceifadas pela violência e/ou da falta de oportunidades em Salvador. Quanto sofrimento, quanta destruição, quanta dor!
Brown tem um discurso sim, mas sinto, com muita tristeza, não ser o mesmo do seu dia a dia. Espero está enganado! Todos, de qualquer origem, cor, nível cultural e econômico ou ambiente familiar, têm direito à excelência que esse governo de merda não lhes oferecem, num dos maiores enganos da nossa história. E a falta de educação do soteropolitano é uma consequência disso. Não precisamos viver sob o melancólico império da mediocridade que parece fácil e inocente, nãoprecisamos de esmolass desse governo, mas travar nossas capacidades, abafar nossa lucidez, e nos deixar tão agradavelmente distraídos é uma coisa de se lamentar. Da minha parte, lamento a falta de educação e desrespeito destas pessoas em Salvador. Acham que por estar pagando podem fazer o que quiser. Esta gente não merece ter um teatro como o TCA perto de casa. Então, você que é mal educado e costuma faltar com respeito: vai se tratar ao invés de ficar atrapalhando quem vai curtir os espetáculos
Elenilson Nascimento é escritor e editor do bolg Cabine.
Texto publicado originalmente no blog Cabine
Fotos: Maurício Serra