O assunto musical dos últimos dias tem sido o docudrama Tim Maia: Vale O Que Vier, produzido pela Rede Globo, misturando trechos do filme Tim Maia de Mauro Lima, reconstituições inéditas e depoimentos exclusivos. Apesar da boa audiência (24 pontos, 51% de participação em São Paulo), o especial corre o risco de ser lembrado como uma “falsificação da biografia de Tim Maia” (segundo o DCM) que “limpou a barra de Roberto Carlos” (como definiu a Veja), que “protege Roberto Carlos e corta desprezo por Tim Maia” (UOL), que “mutilou e contradisse Tim Maia” (Pipoca Moderna).
O ponto principal da polêmica é o papel de Roberto Carlos na(s) trama(s). Em Tim Maia, o filme, o cantor capixaba é uma espécie de “inimigo favorito” de Tim desde os tempos de adolescência. Um pupilo ingrato, a quem o Síndico teria ensinado boa parte de seus truques, mas que, com o cetro e a coroa de Rei, teria sido incapaz de ajudar o amigo em dificuldades. Na “recriação do filme” da Globo, Roberto, Erasmo e o personagem narrador (Tim Maia, interpretado pelo mesmo ator Babu Santana do cinema) garantem, em resumo, que o Brasa foi tão generoso quanto possível em relação a Tim e que, literalmente, “lançou o gordinho mais querido do Brasil” ao gravar “Não Vou Ficar” em 1969.
Bem, não vou entrar nessa discussão. Você pode acreditar em quem quiser. Se na versão de Roberto Bonzinho da Globo ou na versão Roberto Malvado dos cinemas (que, na realidade, tem raízes no livro Roberto Carlos em Detalhes de Paulo César Araújo, que publicou pela primeira vez a cena forte de Roberto ordenando para alguém de seu staff que jogasse “um dinheiro aí pro Tião”). Até porque Tim Maia não está aí para ser confrontado nem ouvido, assim como Nice Rossi, que de acordo com os adeptos da corrente do Roberto Malvado, teria sido a verdadeira responsável pela primeira chance de Tim numa gravadora.
Acredite em quem você quiser. Eu tenho pesquisado profundamente o período 1968-1972 da música pop brasileira, do qual tanto um quanto outro são personagens fundamentais, para o meu próximo livro e, depois de entrevistar gente o suficiente e pesquisar em fontes suficientes, tenho uma versão muito mais segura, saborosa e diferente das versões dicotômicas na mesa. Mas não é este meu assunto hoje. Meu assunto é que Roberto Carlos está apenas começando a pagar pelo seu desprezo histórico pelo jornalismo, pelo tanto que esnobou a história e o registro de sua própria figura como parte da cultura popular brasileira.
Quando surgiu como ídolo popular, em meados dos anos 1960, Roberto colaborava com a imprensa de celebridades. Sabemos tudo sobre sua vida íntima, seus amores, suas excentricidades, seus carros, suas casas, seus casamentos. Sobre quando cultivou bigode, sobre onde comprava suas roupas psicodélicas e como cortava seu cabelo. Sobre o sapo que atropelou ou sobre como fala com as plantas. Sabemos dos disfarces que usava para sair à rua e sobre seus pratos favoritos. Mas você nunca viu o Roberto falando sobre música, sobre suas influências, sobre os discos que ouvia ou os músicos com os quais trabalhou. Tim Maia, você já viu falando sobre isso. Já leu, já ouviu.
Roberto entende de jornalismo de celebridades. Para você ter uma ideia, quando ele se tornou ídolo em São Paulo, trouxe do Rio um secretário particular, Nichollas Mariano, a quem convenceu a que se apresentasse como “mordomo” justamente para reforçar para os jornalistas que acampavam na porta de seu apartamento a imagem de nobreza que seu epíteto de “Rei” inspirava. Foi só quando começou a trabalhar com o empresário Marcos Lázaro, em 1967, que este o convenceu a abrir o castelo para a imprensa cultural que surgia, levando jornalistas a turnês pelo Brasil e negociando entrevistas exclusivas. É desta curta fase o pouco de relevante que se publicou sobre Roberto na imprensa brasileira, n’O Pasquim, n’O Bondinho, na revistaRealidade e na Intervalo.
Entretanto, a medida que os anos 1970 avançavam, Roberto descobriu um jeito muito mais simples de lidar com a imprensa escrita: negociando exclusivas com a maior revista semanal da época, a Manchete, em troca de cobertura desbragadamente favorável de sua vida e carreira (é da revista a inacreditável manchete a respeito da separação de Roberto e Nice: “nossa separação foi um ato de amor”). E descobriu uma maneira ainda mais simples e prática de lidar com a imprensa eletrônica: dando as sempre patéticas entrevistas anuais ao jornalismo da TV Globo, emissora da qual é contratado – uma vergonha para o jornalismo da Globo, claro, mas cujas consequências para a própria carreira Roberto é incapaz de perceber.
Fora disso, Roberto tornou-se especialista em falar sem dizer nada (nas minhas pesquisas, encontrei uma entrevista sensacional do cantor a favor e contra a censura ao mesmo tempo, no início dos anos 1970) e a pintar qualquer assunto daquela mesma cor azul-espírita indefinida que adorna sua comunicação visual há décadas.
O mais irônico (e triste) é que a carreira de Roberto Carlos ascendeu precisamente junto com a ascensão da cultura pop e do jornalismo de rock. Foi aí que a cobertura de música popular deixou os cadernos de celebridade e passou a ser vista como um fenômeno ao mesmo tempo artístico e comportamental. A Rolling Stone, o Jornal da Tarde, o Luiz Carlos Maciel, a Ilustrada, a Pop, o Sábado Som de Nelson Motta, a Bizz e a MTV, as listas de melhores de todos os tempos, as biografias e as reedições comemorativas são frutos dessa cultura.
Roberto não só não entende essa cultura como a despreza. Nega entrevistas a jornalistas musicais sérios, mas não recusa receber Gloria Maria para que ela trate seu TOC como mais uma excentricidade, como fez em 2002 em rede nacional. Manda recolher a única tentativa de tratar sua carreira com seriedade acadêmica, Roberto Carlos em Detalhes, porque ele quer a reserva de mercado em publicar sua autobiografia: “Eu estou escrevendo a minha história e informando muito mais as pessoas sobre a minha vida e sobre as minhas coisas do que qualquer outra fonte”, disse ao Fantástico em 2013.
Com todo respeito às suas dores, Roberto, ninguém está nem aí para a sua vida e suas coisas. Mas estamos há 50 anos querendo saber o que você ouvia, em como moldou sua música, como gravou seus clássicos, como concebeu seus shows no Canecão, em como recebeu os arranjadores e produtores de seus álbuns, em como Tim Maia te ensinou a tocar, como ele influenciou na sua “fase soul” e como decidiu gravar “Não Vou Ficar”.
Hoje Roberto é visto como um artista violento que usa de seu poder para processar professores, embargar obras e censurar artistas. Um compositor que não compõe, um cantor que se contenta em reempacotar gravações velhas com capas novas e horríveis. O garoto-propaganda que a Friboi demitiu, o desafeto de Tim Maia que precisou da Globo para mentir a seu favor.
O que há de justo e injusto nisso tudo? Como saber?
Paul McCartney dá entrevistas, curtas e longas, para revistas e para documentários, consulta colecionadores, escreve livros e deixa que escrevam livros. Mick Jagger dá entrevistas, Keith Richards dá entrevistas. Roberto processa biógrafos e acha que basta que saibamos que sua sobremesa favorita é sorvete. Nós sabemos como Paul McCartney, Mick Jagger, Keith Richards e Tim Maia desenvolveram sua obra. De Roberto, não sabemos nada que importa.
Com a obsessão da cultura pop por seu passado, Roberto está começando a pagar por sua própria visão utilitarista do jornalismo e da história. E vai pagar cada vez mais caro, especialmente quando não estiver mais aqui para dar a versão que passou a vida se negando a dar.